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terça-feira, 13 de agosto de 2013

''Canção como aviso''

As minhas emoções estão intactas
como antes de acordar: serenas
nesta solidão, nem sei se esperam.
Será preciso alimentar de novo
a chama adormecida
do amor que armou incêndios na penumbra
e me apagou.


Estou aqui ainda, enriquecida a mais
com as memórias doces da alegria.
Para me alumiar, quem venha agora
terá de compreender o meu receio
de que seja longa só a fantasia
e breve a permanência de quem veio.

Lya Luft
In: Secreta Mirada

''CANÇÃO PENSATIVA''

Um toque da solidão, e um dedo
severo me traz à realidade: não depender
dos meus amores, não me enfeitar
demais com sua graça, mas ver
que cada um de nós é um coração sozinho.

Cada um de nós perenemente
é um espelho a se mirar, sabendo
que mesmo se nesse leito frio e branco
um outro amor quer derramar-se em nós,
entre gélido cristal e alma ardente
levanta-se paredes para sempre.

(E para sempre
a amante solidão nos chama e abraça.)

Lya Luft
In Secreta Mirada

''CANÇÃO EM OUTRAS PALAVRAS''

O melhor cuidado com o amor
é deixar que floresça,
pois amor não se cultiva: é flor
selvagem
Como as estações do ano, ele se abre,
dorme, e volta a perfumar a vida.
Amor é dom que se recebe
com ternura, para que não pereça
sua delicadeza em nossa angústia.

O amor não deve encerrar a coisa possuída,
mas ser parapeito de janela, ou cais
de onde se desprendam os revôos
e partam os navios da beleza
para voltar ou não, conforme amarmos:
nem de menos
nem demais.

Lya Luft
In Secreta Mirada
, bela por ser livre.

''CANÇÃO DA ALHEIA PRIMAVERA''

Talvez se agite um braço me chamando:
mas tão longe, nem move
as névoas dessa ausência.
Quando achei que era tempo, não era:
quando apanhei a estrela, passava
um vaga-lume qualquer entre meus dedos.

Talvez desça um navio me procurando
mas não quero viagens: sou
um pálido coral numa água morna,
e vagamente aflora um movimento
-mas pode ser a sombra do meu sono.

Talvez haja um amor me inventando,
mas tão vago, nem roça
as beiras da minha praia: concha breve
e encolhida, não vou desenrolar
o meu abraço. Quando achei
que era tempo, não era:
talvez este ondular entre meus ramos
venha de alguma alheia primavera.


Lya Luft
In: Secreta Mirada

''CANÇÃO EM SEGREDO''


Dentro desta mulher
um anjo menino
brinca de ciranda na calçada
e tem fome de futuro.
Dentro desta mulher
uma criança se debruça na janela
vendo chegar o amor
e se julga imortal.

Dentro desta mulher
uma guerreira constrói sua vida
depois de parir filhos para o mundo.
Dentro desta mulher
outra mulher enterra o seu amor perdido
e mesmo assim espera.

(Dentro desta mulher
o mistério das coisas
finge dormir.)

Lya Luft
In: Secreta Mirada

''CANÇÃO DA ESCUTA''

O sonho na prateleira
me olha com seu ar
de boneco quebrado.
Passo diante dele muitas vezes
e sorrimos um para o outro,
cúmplices de nossos desastres cotidianos.
Mas quando o pego no colo
(como às bonecas tão antigamente)
para avaliar se tem conserto
ou se ficará para sempre como está,
sinto sem estranheza
que dentro dele ainda bate
um pequeno tambor obstinado
e marca – timidamente –
um doce ritmo nos meus passos.

Lya Luft
In: Secreta Mirada

''CANÇÃO NA JANELA''

Há pouco emergi
da mornidão do sono.
Pensei flutuar:
onde termina minha vida
e começa o mar?
Tudo ao meu redor são dois
cristais reverberando.

Meu destino me contempla
indagador:
nesta imensidão
sou um capim perfumado
que balança, a um tempo
susto e chamamento
-pronta para me desfazer
em outra alma.

Lya Luft
In: Secreta Mirada

CANÇÃO DA IMORTALIDADE


Os filhos que tive são adultos,
com filhos que também tiveram: sangue
e cílios,
jeito de andar, gesto
e gosto nesta vida estão nessas carnes que pari.

Através delas olham-me o amado morto, o pai morto,
a avó perdida, e o mistério de tudo
que sempre me assombrou. Rosa de espantos,
cata-vento de traços espalhados
como num milagre de multiplicação,
cheio de surpresas: porque ali
naquele olho azul me vejo, naquela fina mão te vejo,
amado meu, como eles se verão futuramente
quando nós formos apenas sombra
na memória.

Lya Luft
In: Secreta Mirada

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

''CANÇÃO DA ESCUTA''


O sonho na prateleira
me olha com seu ar
de boneco quebrado.
Passo diante dele muitas vezes
e sorrimos um para o outro,
cúmplices de nossos desastres cotidianos.
Mas quando o pego no colo
(como às bonecas tão antigamente)
para avaliar se tem conserto
ou se ficará para sempre como está,
sinto sem estranheza
que dentro dele ainda bate
um pequeno tambor obstinado
e marca – timidamente –
um doce ritmo nos meus passos.

Lya Luft
In: Secreta Mirada

Pequena biografia...




Lya Fett Luft
 (Santa Cruz do Sul, 15 de setembro de 1938) é uma escritora e tradutora brasileira. É também uma professora universitária aposentada e colunista da revista semanal Veja.

Lya Fett Luft nasceu em Santa Cruz do Sul, uma cidade de colonização alemã, como filha do advogado e juiz Arthur Germano Fett. A sua família tinha muito orgulho de suas raízes germânicas e, por isso, considerava-se superior aos "brasileiros", embora seus integrantes tivessem chegado ao Brasil em 1825.1 Durante sua juventude, Lya foi uma tida como uma menina desobediente e contestadora: não gostava de aprender a cozinhar nem a bordar e chegou a ser mandada para um internato durante dois meses. Porém, desde cedo foi uma ávida leitora — aos onze anos, já recitava poemas de Göethe e Schiller — e tinha um relacionamento mais natural com o pai, um homem culto a quem idolatrava, do que com a mãe. Aos dezenove anos, ela se converteu ao catolicismo, espantando aos pais, ambos luteranos.

A partir de 1959, Lya Luft passou a residir em Porto Alegre, onde se diplomou em Pedagogia e em Letras Anglo-Germânicas pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Passou a trabalhar então como tradutora de literaturas em alemão e inglês — já traduziu para o português mais de cem livros, dentre os quais se destacam traduções de Virginia Woolf, Rainer Maria Rilke, Hermann Hesse, Doris Lessing, Günter Grass, Botho Strauss e Thomas Mann.

Em 1963, aos vinte e cinco anos, Lya se casou com Celso Pedro Luft, então um irmão marista, dezenove anos mais velho do que ela. Eles se conheceram durante uma prova de vestibular, para a qual ela chegara atrasada. Ela e seu marido tiveram três filhos: Suzana (1965), André (1966) e Eduardo (1969).

De 1970 a 1982, ela trabalhou como professora titular de Linguística na Faculdade Porto-Alegrense (FAPA) e obteve o grau de mestra em Linguística (1975, pela PUCRS) e em Literatura Brasileira (1978, pela UFRGS).3
Em 1985, Lya Luft anulou seu casamento com Celso para viver com o psicanalista e também escritor Hélio Pellegrino, no Rio de Janeiro. Eles foram apresentados um ao outros por Nélida Piñon. Em 1992, quatro anos após a morte de Pellegrino, Lya voltou a viver como esposa de Celso Luft, de quem ficou viúva em 1995.


No início de seu primeiro casamento, Lya Luft começou a escrever poemas, reunidos no livro Canções de limiar (1964). Em 1972, foi publicado seu segundo livro de poemas, intitulado Flauta doce. Quatro anos mais tarde, escreveu alguns contos e mandou-os para um editor da Nova Fronteira, Pedro Paulo Sena Madureira, que os considerou "publicáveis". Em 1978, foi lançado sua primeira coletânea de contos, Matéria do Cotidiano.

O mesmo editor da Nova Fronteira tinha aconselhado Lya a escrever romances. Daí surgiu As parceiras, publicado em 1980. No ano seguinte veio A asa esquerda do anjo. Tais livros foram influenciados por uma visão de morte que a autora teve depois de sofrer um acidente automobilístico quase fatal em 1979.

Em 1982, publicou Reunião de Família e, em 1984, outras duas obras: O Quarto Fechado e Mulher no Palco. O primeiro foi lançado nos Estados Unidos sob o título The Island of the Dead. Em 1987, lançou Exílio; em 1989, o livro de poemas O Lado Fatal; e, em 1996, o premiado O Rio do Meio (ensaios), considerado a melhor obra de ficção daquele ano.

Em 2001, Luft recebeu o prêmio União Latina de melhor tradução técnica e científica, pela obra Lete: Arte e crítica do esquecimento, de Harald Weinrich.

No total, já escreveu e publicou 23 livros, entre romances, coletâneas de poemas, crônicas, ensaios e livros infantis.

Os livros de Lya Luft continuam sendo traduzidos para diversos idiomas, como alemão, inglês e italiano.

''Todas as Águas''

Quando pensei que estava tudo cumprido,
havia outra surpresa: mais uma curva
do rio, mais riso e mais pranto.

Quando calculei que tudo estava pago,
anunciaram-se novas dívidas e juros,
o amor e o desafio.

Quando achei que estava serena,
os caminhos se espalmaram
como dedos de espanto

em cortinas aflitas. E eu espio,
ainda que o olhar seja grande
e a fresta pequena.


LyaLuft
In: Secreta Mirada

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

CANÇÃO DA VEZ PRIMEIRA

CANÇÃO DA VEZ PRIMEIRA

Guardei-me para ti como um segredo
que eu mesma não desvendei:
há notas na minha viola
que não toquei,
há praias na minha vida
que não andei.

É preciso que me tomes
além do riso e do olhar
naquilo que não conheço
e adivinhei;
é preciso que me cantes
a canção do que serei
e me cries com teu gesto
que nem sonhei.

Lya Luft
In: Secreta Mirada

CANÇÃO PENSATIVA

CANÇÃO PENSATIVA

Um toque da solidão, e um dedo
severo me traz à realidade: não depender
dos meus amores, não me enfeitar
demais com sua graça, mas ver
que cada um de nós é um coração sozinho.

Cada um de nós perenemente
é um espelho a se mirar, sabendo
que mesmo se nesse leito frio e branco
um outro amor quer derramar-se em nós,
entre gélido cristal e alma ardente
levanta-se paredes para sempre.

(E para sempre
a amante solidão nos chama e abraça.)

Lya Luft
In Secreta Mirada

CANÇÃO DO CALEIDOSCÓPIO

CANÇÃO DO CALEIDOSCÓPIO

Quando achei que era tempo de sossego
jorraste nas minha veias
como um vento sagrado, um mar perdido.
Quando esperei que tudo tivesse sido
vivido, sofrido e chorado,
amadureceu esta fruta em meu deserto.


Quando pensei chegar no fim
de todos os corredores,
esta porta se abriu: sei que estás ali
a desenhar paisagens novas
plantar árvores e deitar rios
onde eu imaginava haver sabedoria
e um corpo apaziguado,
nada mais.

Lya Luft
In: Secreta Mirada

CANÇÃO COMO AVISO

CANÇÃO COMO AVISO

As minhas emoções estão intactas
como antes de acordar: serenas
nesta solidão, nem sei se esperam.
Será preciso alimentar de novo
a chama adormecida
do amor que armou incêndios na penumbra
e me apagou.

Estou aqui ainda, enriquecida a mais
com as memórias doces da alegria.
Para me alumiar, quem venha agora
terá de compreender o meu receio
de que seja longa só a fantasia
e breve a permanência de quem veio.

Lya Luft
In: Secreta Mirada

CANÇÃO EM OUTRAS PALAVRAS

CANÇÃO EM OUTRAS PALAVRAS

O melhor cuidado com o amor
é deixar que floresça,
pois amor não se cultiva: é flor
selvagen, bela por ser livre.
Como as estações do ano, ele se abre,
dorme, e volta a perfumar a vida.
Amor é dom que se recebe
com ternura, para que não pereça
sua delicadeza em nossa angústia.

O amor não deve encerrar a coisa possuída,
mas ser parapeito de janela, ou cais
de onde se desprendam os revôos
e partam os navios da beleza
para voltar ou não, conforme amarmos:
nem de menos
nem demais.

Lya Luft
In Secreta Mirada

CANÇÃO DA ALHEIA PRIMAVERA

CANÇÃO DA ALHEIA PRIMAVERA

Talvez se agite um braço me chamando:
mas tão longe, nem move
as névoas dessa ausência.
Quando achei que era tempo, não era:
quando apanhei a estrela, passava
um vaga-lume qualquer entre meus dedos.

Talvez desça um navio me procurando
mas não quero viagens: sou
um pálido coral numa água morna,
e vagamente aflora um movimento
-mas pode ser a sombra do meu sono.

Talvez haja um amor me inventando,
mas tão vago, nem roça
as beiras da minha praia: concha breve
e encolhida, não vou desenrolar
o meu abraço. Quando achei
que era tempo, não era:
talvez este ondular entre meus ramos
venha de alguma alheia primavera.

Lya Luft
In: Secreta Mirada