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quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Estou sempre nos limiares


Estou sempre nos limiares:
sou sempre esta pausa antes
do início de uma canção,
sou um momento de espera,
quase um fim de solidão.

Sou margem de caminho para a morte,
gesto que pressente atrás do véu:
promessa de chuvas sob o céu,
e vôo que antes de partir
repousa...

- Lya Luft,
em "Mulher no palco", 1984.


SE ME QUISEREM AMAR



Se me quiserem amar, terá de ser agora:
depois, estarei cansada.
Minha vida
foi feita de parceria com a morte:
pertenço um pouco a cada uma,
para mim sobrou quase nada.

Ponho a máscara do dia,
um rosto cômodo e fixo:
assim garanto a minha sobrevida.
Se me quiserem amar, terá de ser hoje:
amanhã, estarei mudada.

LYA LUFT
In Mulher no Palco, 1984



domingo, 6 de outubro de 2013

VIAGEM



Não é preciso morar na esquina 
nem ser jovem ou belo: 
o amor melhor é sempre dentro 
e perto. 
Chega inesperado, 
vem forte vem doce, acalma 
e desatina. 

Se está na minha rua ou vem de fora, 
ele ignora o tempo e a idade: 
o amor é sempre 
agora. 

É vento sutil e mar sem beira: 
o amor é destino de quem está aberto, 
e dói sem remissão quando negado. 

O melhor amor sacia a fome inteira: 
mas tem de ser aceito, 
tem de ser ousado, tem de ser 
navegado.

LYA LUFT
In Para não dizer adeus, 2005


DÁDIVA




Derrama sobre mim tua esperança de homem, 
tanto tempo contida: 
planta em meu solo a árvore da renovação, 
mais alta do que noite escura. 

Larga a solidão, apaga a desesperança, 
inventa um novo reino 
onde as águas não são naufrágio, 
nem o amor desengano. 

Vem para esta enseada, onde há ventania 
e risco, mas podes ancorar teu coração 
depois da longa procura, 
para que ele pouse e pulse e brilhe 

como a estrela-do-mar em seu fundo 
de oceano.

 LYA LUFT
In Para Não Dizer Adeus, 2005



BEM QUE EU QUERIA DORMIR



Bem que eu queria dormir. 
mas a culpa chamou-me a noite inteira. 
Eu preferia fugir, 
mas a morte arranhava a minha porta. 

Devia esquecer o amor, 
mas esse não desiste de mim: 
me agarra, me devora e me vomita 
no alto da escada. 
enganosa luz. 
Bela dama: basta uma palavra tua. 



 LYA LUFT 
Im Mulher no palco, 1984 



ENTÃO ALGO MUDOU




Então algo mudou: o tom de voz, o olhar que se 
esquiva, a mão que se afasta. 
A porta precisa ser fechada, a ponte levantada, 
queimados os navios. Levaremos meses, anos esten- 
dendo as mãos para um vazio, interrogando uma 
ausência. 
Encarar a realidade é um modo de morrer. Mas sem 
isso, não haverá renascimento.

 LYA LUFT
In Secreta Mirada, 1997


ESTOU SEMPRE NOS LIMIARES



Estou sempre nos limiares: 
sou sempre esta pausa antes 
do início de uma canção, 
sou um momento de espera, 
quase um fim de solidão. 

Sou margem de caminho para a morte, 
gesto que pressente atrás do véu: 
promessa de chuvas sob o céu, 
e vôo que antes de partir 
repousa...

 LYA LUFT
In Mulher no Palco, 1984


SEMÂNTICA




Não se enganem comigo: 
se digo sul pode ser norte, 
chego mas fico ausente, 
o triste é também o belo, 
procuro o que não se perde 
nem se pode encontrar. 

Buscar resposta nos livros 
é esconder-se entre linhas. 
Não creio no que se enxerga, 
mas nisso que se disfarça 
por mais que se tente olhar: 
assim me tem seduzida. 

Eis o jogo que eu persigo, 
meu jeito de ser feliz, 
o desafio que me embala: 
sempre que escrevo "morte" 
estou falando da vida. 


LYA LUFT
In Para Não Dizer Adeus, 2005


MAR DE MENINA



Havia um mar, 
e ali brotava uma ilha 
povoada de lobos e de pensamentos. 
Havia um fundo escuro e belo 
onde os náufragos dançavam com sereias. 
Havia ansiedade e abraço. 
Havia âncora e vaguidão. 

Brinquei com peixes e anjos, 
fui menina e fui rainha, 
acompanhada e largada, 
sempre a meia altura 
do chão. 

A vida um barco, remos ou ventos, 
tudo real e tudo 
ilusão.

LYA LUFT 
In Para não dizer adeus, 2005



MATURIDADE



Caminho entre as minhas perdas 
que são insetos escuros, 
e os meus ganhos: douradas borboletas. 

A luz de uma paixão, o dedo da morte, 
o grave pincel da solidão 
desenharam meus contornos, firmaram 
meu chão. 

Que liberdade, não precisar pensar; 
que alívio não ter de administrar 
minha vida: 
apenas andar, e olhar, 
apenas ouvir essas vozes 
que vêm de longe, passam por mim 
e não me dão importância. 

Porque no vasto oceano, 
a minha eventual desarmonia 
é só uma gota 
desafinada. 
Mais nada.

 LYA LUFT
In Para Não Dizer Adeus, 2005

NÃO É UMA ESPERANÇA



Não é uma esperança: 
é a voz de alguém clamando 
sempre que espero que algum anjo fale. 
Não sou ninguém, sentada neste espaço 
entre os espelhos do mar e os penhascos 
do coração. 
(Se eu me lançasse deles, enrolada 
nas tantas frases que formei na vida?) 

No mar-espelho fui jogando todas 
as máscaras sem olhos 
que me guardavam no avesso, e me vestiam. 
São delas essas mãos que agora emergem 
do mar, do sonho, da memória. 
e ao meu pescoço amarram suas tranças 
para levar.

 LYA LUFT
In Mulher no palco, 1984


REVELAÇÃO



Quando chegaste,
redescobri em mim inocência e alegria.
Removi a máscara que sobrava:
nada havia a esconder de ti,
nem medo - a não ser partires.

Supérfluas as palavras,
dispensada a aparência, fiquei eu,
sem prumo,
como antes da primeira dúvida
e do último desencanto.

Quando chegaste,
escutei meu nome como num outro tempo.
o meu lado da sombra entregou
o que ninguém via:
as feridas sem cura e a esperança sem rumo.

Começa a crer, por mim, que o amor é possível,
e que a vida vale a pena e o pranto
de cada dia.

 LYA LUFT
In Perdas e Ganhos, 2003

INFÂNCIA



"A infância é o chão sobre o qual caminharemos
 o resto dos nossos dias.
 Se for esburacado demais vamos tropeçar mais,
 cair com mais facilidade e quebrar a cara -
 o que pode até ser saudável, pois nos dará 
 chance de  reconstruirmos nosso rosto."
- Lya Luft, 
em “Perdas e Ganhos"







quinta-feira, 3 de outubro de 2013

O LADO FATAL





Quando meu amado morreu, não pude acreditar:
andei pelo quarto sozinha repetindo baixo:
"Não acredito, não acredito."
Beijei sua boca ainda morna,
acarinhei seu cabelo crespo,
tirei sua pesada aliança de prata com meu nome
e botei no dedo.
Ficou larga demais, mas mesmo assim eu uso. 

II 

Muita gente veio e se foi.
Olharam, me abraçaram, choraram,
todos com ar de uma incrédula orfandade. 

III 

Aquele de quem hoje falam e escrevem
(ou aos poucos vão-se esquecendo)
é muito menos do que este, deitado em meu coração,
meu amante e meu menino ainda. 

IV 

Deus
(ou foi a Morte?)
golpeou com sua pesada foice
o coração do meu amado
(não se vê a ferida, mas rasgou o meu também).
Ele abriu os olhos, com ar deslumbrado,
disse bem alto meu nome no quarto do hospital,
e partiu. 

Quando se foram também os médicos e suas máquinas inúteis,
ficamos sós: a Morte (ou foi Deus?)
o meu amado e eu.
Enterrei o rosto na curva do seu ombro
como sempre fazia,
disse as palavras de amor que costumávamos trocar.
O silêncio dele era absoluto: seu coração emudecido
e o meu, varados por essa dourada foice.
Por onde vou deixo o rastro de um sangue denso e triste
que não estancará jamais. 


Insensato eu estar aqui, e viva.
O rosto dele me contempla
vincado e triste no retrato sobre minha mesa;
em outros, sorri para mim, apaixonado e feliz.
Insensato, isso de sobreviver:
mas cá estou, na aparência inteira. 

Vou à janela esperando que ele apareça
e me acene com aquele seu gesto largo e generoso,
que ao acordar esteja ao meu lado
e que ao telefone seja sempre a sua voz. 

Sei e não sei que tudo isso é impossível,
que a morte é um abismo sem pontes
(ao menos por algum tempo). 

Sobrevivo, mas pela insensatez. 

VI 

Pensei que estávamos apenas no começo:
a casa mal-e-mal nos alicerces.
Mas provavelmente estava concluída
e eu não sabia.
Tínhamos erguido em nossos poucos anos
as paredes necessárias;
o telhado se inclinava ao jeito certo,
e havia vidraças nas janelas.
(Éramos felizes ali dentro
mesmo com as tempestades de fora.)
Tudo se construiu num lapso tão curto:
até a porta de entrada, por onde ele saiu
casualmente como quem vai comprar jornal.
A porta está apenas encostada
embora pareça alta, dura, intransponível:
do lado de lá, o meu amor vê as maravilhas
que tanto nos intrigavam nesta vida. 

VII 

Tanto escrevi sobre a morte
em livros e poemas nesses anos:
sempre achei que a entendia um pouco. 

Mas agora que ela me dilacerou a vida,
me rasgou o peito,
me levou o amado,
sinto que mal começo a compreender
sua mensagem:
tirando-o de mim, a morte o devolve
para que seja mais meu. 

Dentro de mim um quebra-cabeças, e nele o meu amado.
Nem Deus o tirará daqui. 

VIII 

O meu amado morreu:
viver sem ele, como dói.
Não tivemos filhos juntos,
nosso passado foi tão breve que era sempre
[presente.
Um dia ele mandou fazer um par de alianças
de pesada prata, parecendo antigas;
gravou apenas nossos nomes, sem data, e disse:
"Somos um só desde sempre."
Ainda não acreditei em sua morte,
e talvez isso me salve por enquanto.
Levantar-me da cama cada dia é um ato heróico,
acender o cigarro, atender o telefone, tomar café.
Mas faço tudo isso:
falo, ando, recebo visitas.
Compro móveis para a casa onde moro sem ele,
imaginando: será que ele vai gostar? 

De algum secreto lugar me vem a força
para erguer a xícara, acender o cigarro,
até sorrir quando alguém me diz:
"Você hoje está com a cara ótima",
quando penso se não doeria menos
jogar-me de um décimo-primeiro andar. 

XIX 

Amado meu, agora morto,
postado do lado de lá da fronteira que nos seduzia,
mudo e quedo como se não existisses:
eu sei que existes,
intensamente, ardentemente existes,
feito e desfeito no fogo de um amor maior que o nosso
mas que nos abrange. 

Amado meu, morto agora e para sempre vivo,
hás de ter ainda o intenso olhar que me entendia,
as curvas amorosas da boca que chamou meu nome,
as belas, inquietas mãos que ardiam nas minhas.
Ajuda-me agora, silencioso que estás,
a suportar a sobrevida
e a decifrar esse alto, intransponível muro que me cerca. 


Nunca tivemos filhos juntos, e ele reclamava:
"Nosso amor merecia um filho ao menos. 

"Nosso filho é a minha dor de hoje,
é a fulguração que nos deixava tontos,
é o novelo da memória que teço e reteço
nas minhas insônias. 

Nosso filho é o meu tempo de agora
para falar do meu amado:
da sua força e sua fragilidade,
da sua indignação e seus prantos,
da sua necessidade de ser amado e aceito
como finalmente deve estar sendo, por inteiro,
na realização de todos os seus vastos desejos. 

XI 

O meu amor enveredou por sua morte
como quem vai a um encontro de amor:
impaciente.
Deixou-me este coração golpeado,
esta derrota.
Mas também ficou a claridade desses anos
e a sensação de que ele finalmente
vive o encontro de amor
que toda a devoção de minha vida não lhe poderia dar.
(Um dia, celebraremos juntos.) 

XII 

Se me tivessem amputado braços e pernas
e furado o coração com frias facas
e cegado meus olhos com ganchos
e esfolado a minha pele como a de um podre bicho
- nada doeria mais
que te saber morto, amado meu,
depositado
nesse irremediável poço de silêncio de onde não respondes.
(A não ser em sonho, quando me olhas
e tuas mãos tocam as minhas espalmadas,
abertas, feridas, vazias.) 

XIII 

O meu amado morreu:
preciso viver sua morte até o fim.
Morreu sem que se instalasse entre nós cansaço e banalidade.
Talvez tenha morrido na medida certa
para nada se desgastar.
Dele me vem a dor, mas também a ternura,
a claridade que me permite ver
em todos os rostos o seu rosto
em todos os vultos o seu vulto
e ouvir em todos os silêncios
o seu inesperado riso de criança 

XIV 

Estranha a vida:
fico tangendo meus dias
como um rebanho de ovelhas desordenadas
nessa triste e fria cidade de Porto Alegre
onde ele gostava de estar
olhando o pôr-do-sol e vendo amigos.
"Morrer é tomar um porre de não-desejo"
dizia o meu amado, que era um homem desejoso:
desejava a vida, desejava a morte, desejava a justiça,
desejava a eternidade e a paz. 

Estranha a vida:
quando releio uma frase sua,
"viver é modular a morte",
em sangue e dor preparo a minha ida. 

Estranho também esse amor,
com hora marcada para a mutilação
da morte, o minuto acertado,
e o fim consultando o relógio
para nos golpear. 

Estranho esse amor de agora,
com meu amado atrás de um espelho baço
onde às vezes penso divisar seu vulto
como num aquário.
Enrolado em silêncio,
mais que nunca o meu amor comanda a minha vida. 

XV 

Não falem alto comigo:
andem sempre na ponta dos pés.
Principalmente, não me toquem.
Finjam que não vêem se tenho um jeito absorto,
se nem sempre entendo as perguntas
com a rapidez de antigamente,
se pareço fatigada
e sem graça como nunca fui. 

Façam silêncio ao meu redor.
Não me interessa nada o cotidiano nem o místico.
Não quero discutir o preço do mercado
nem os grandes mistérios da eternidade. 

XVI 

Levo meu amado no peito
como quem carrega nos braços para sempre
uma criança morta. 

XVII 

Amado meu, que tanto ensinaste
de mim a mim mesma, e do mundo
a quem o conhecia pouco: 

quando se desfizer escura a noite desta perda,
quero enxergar pelos teus olhos,
amar através do teu amor
as coisas que me restaram. 

Amado meu, vivo em mim para sempre,
apesar da ruga a mais
e do olhar mais triste,
devo-te isto:
voltar a amar a vida
como agora amas, inteiramente,
a tua morte.


- Lya Luft, 
em “O lado fatal”. 1988.
O poema foi escrito para Hélio Pellegrino (1924-1988).





Lembro-me de ti



Lembro-me de ti
Nesse instante absoluto,
A vida conduzida por um fio de música.
Intenso e delicado, ele vai-nos fechando num casulo
Onde tudo será permitido.

Se é só isso que podemos ter,
Que seja forte. Que seja único.
Tão íntimo quanto ouvirmos a mesma melodia,
Tendo o mesmo - esplêndido - pensamento.

- Lya Luft, 
em "Mulher no palco", 1984.


Inútil espera




O rumor de uns passos enérgicos,
a voz me chamando no jardim, na sala
rosas com nomes secretos, e um perfume
igual ao dela.
Legou-me sua alegria inesperada,
o amor à vida,
e algo do perfil. Não sua beleza:
essa ficou nos retratos.
Nada lhe significo mais:
quando me vê enxerga outros rostos,
mais reais do que eu na sua ilha.
É minha mãe e não é,
vive e não vive, na clausura da mente
adormecida.

Mas eu,
a cada visita espero o impossível:
que ainda uma vez o seu olhar me alcance,
e por um momento ame, nesta mulher, a sua filha.

- Lya Luft,
 em "Para não dizer adeus", 2005

Homens são passos



Homens são passos; mulheres são perfumes
que se aproximam, param e se esquivam
sem lançar raízes nessa treva.
Beijam-se às vezes, como num murmúrio,
e eu abro meus lábios tão precários,
para depois, num mundo só de beijos,
pousar a mão sobre meus olhos mortos,
como se baixasse nesses entrevados
o teu carinho, a medo.

- Lya Luft,
em "Mulher no palco", 1984.

Essa máscara




Essa máscara de placidez
tanto me absorveu, que hoje
não há distância entre eu e ela:
revela a minha face,
suave e sutil,
e que me torna amiga.

Sou ela, ou serei eu?
Talvez, por tão antiga,
seja ela o meu rosto e seja máscara
esse outro perfil que olha para dentro.
Mansa por fora: dentro uma floresta escura,
poço de paixão, abismo e arremesso.

- Lya Luft, 
em "Mulher no palco", 1984.

Escolha



Apesar do medo
escolho a ousadia.
Ao conforto das algemas, prefiro
a dura liberdade.
Vôo com meu par de asas tortas,
sem o tédio da comprovação.

Opto pela loucura, com um grão
de realidade:
meu ímpeto explode o ponto,
arqueia a linha, traça contornos
para os romper.

Desculpem, mas devo dizer:
eu quero o delírio

- Lya Luft,
 em "Para não dizer adeus", 2005.


Dizendo adeus



Estou sempre dando adeus:
também ao desencontro e ao
desencanto.
Estou sempre me despedindo
do ponto de partida que me lança de si,
do porto de chegada que nunca é
aqui.
Estou sempre dizendo adeus:
até a Deus,
para o reencontrar em outra esquina
de adeuses.
Estarei sempre de partida,
até o momento de sermos deuses:
quando me fizeres dar adeus à solidão
e à sombra.

- Lya Luft, 
em "Para não dizer adeus", 2005.

DANÇA LENTA



Não somos nem bons nem maus:
somos tristes. Plantados entre chão
e estrelas, lutamos com sangue,
pedras e paus, sonho
e arte.

Nem vida nem morte:
somos lúcida vertigem,
glória e danação. Somos gente:
dura tarefa.
Com sorte, aqui e ali a ternura
faz parte.

- Lya Luft, 
em "Para não dizer adeus", 2005.


Círculo



Na vida na morte
esta chama, esta fonte,
esta noite invadida:
seus panos na cama
seus passos na casa
sua voz ao meu lado,
meu bem no seu mundo
varando meu peito:
me povoa, me coroa
de beijos e mágoas
me prende em sua rede,
me define, me redime
me inventa e desinventa
me habita e transfigura,
no ritmo das águas
deste rio sem fundo
que chama na fonte
da morte, na vida.

- Lya Luft, 
em "Para não dizer adeus", 2005.

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

CONFLITO




Tenho medo das águas do destino
a invadirem o que penso e faço,
numa linha de infinda
contradição.
Eu sou assim:
quero fugir mas chamo,
quero ficar mais me assusta
não ter em mim nada seguro
e certo.

Nunca receio a alegria,
para a qual todos os milagres
são normais.
Mas quando tarda quem amo,
meu coração fica exposto
e aberto.

E mesmo assim eu persisto,
e ainda assim espero
ainda, como criança sozinha
atrás do muro.


Lya Luft
In Para Não Dizer Adeus




terça-feira, 1 de outubro de 2013

Perdas & Ganhos



" A vida não está aí apenas para ser suportada
ou vivida, mas elaborada.
Eventualmente reprogramada.
Conscientemente executada.
Não é preciso realizar nada de espetacular.
Mas que o mínimo seja o máximo que a gente
conseguiu fazer consigo mesmo."

Lya Luft,
in Perdas & Ganhos

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

''Canção da tua chegada''


Este fogo, esta fonte,
esta noite de insônia:
teus panos na cama
teus passos na casa
tua voz ao meu lado.
Meu bem que viaja
num mundo tão outro
e está no meu peito
e alumia estas dores
me povoa, me coroa
me leva na sua escuna,
me define, me redime
me inventa e desinventa
que corre comigo
que comigo deita
comigo viaja
na casa no vento
no fogo da fonte
no quarto que é o mundo.

Lya Luft
In: Secreta Mirada

''Canção do rio do meio''


Um rio jorra entre o porão e o sótão:
leva dores e amores, e nosso último riso
há tanto tempo.
Mas numa curva qualquer, porque de novo amamos,
tudo pulsa e brilha de ousadia,
sabendo que temos pela frente
esse calor, esse rumor de águas na areia.


Passa no meio de nós, entre o sonho do sótão
e o medo dos porões, o rio da vida:
que me leve para ti ainda uma vez e muitas,
que venhas até mim antes daquela curva
com a audácia e o fervor que tínhamos perdido.

Lya Luft
In: Secreta Mirada

AVISO


 
Se me quiserem amar, terá de ser agora:
depois, estarei cansada.
Minha vida
foi feita de parceria com a morte:
pertenço um pouco a cada uma,
para mim sobrou quase nada.
 
Ponho a máscara do dia,
um rosto cômodo e fixo:
assim garanto a minha sobrevida.
Se me quiserem amar, terá de ser hoje:
amanhã, estarei mudada.
 
- Lya Luft,
em "Mulher no palco", 1984.
 

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

''Canção em dueto''


Concha rumorosa
tua voz derrama
esse mel dourado
sobre minha vida
teu olhar me inventa
teu gesto me esboça
tenho um rosto novo
que eu nem conhecia.


Concha rumorosa
tua voz me chama
para encontros raros
em outras paragens
delícia de susto
água e labareda
ânsia tão pungente
de que acabe a espera.


Concha rumorosa
vasto mar secreto
onde tu me salvas
e onde eu me naufrago.

Lya Luft
In: Secreta Mirada

''Canção do caleidoscópio''

Quando achei que era tempo de sossego
jorraste nas minha veias
como um vento sagrado, um mar perdido.
Quando esperei que tudo tivesse sido
vivido, sofrido e chorado,
amadureceu esta fruta em meu deserto.


Quando pensei chegar no fim
de todos os corredores,
esta porta se abriu: sei que estás ali
a desenhar paisagens novas
plantar árvores e deitar rios
onde eu imaginava haver sabedoria
e um corpo apaziguado,
nada mais.

Lya Luft
In: Secreta Mirada

'Canção como aviso'


As minhas emoções estão intactas
como antes de acordar: serenas
nesta solidão, nem sei se esperam.
Será preciso alimentar de novo
a chama adormecida
do amor que armou incêndios na penumbra
e me apagou.


Estou aqui ainda, enriquecida a mais
com as memórias doces da alegria.
Para me alumiar, quem venha agora
terá de compreender o meu receio
de que seja longa só a fantasia
e breve a permanência de quem veio.

Lya Luft
In: Secreta Mirada

''Canção da imortalidade''

 

Os filhos que tive são adultos,
com filhos que também tiveram: sangue
e cílios,
jeito de andar, gesto
e gosto nesta vida estão nessas carnes que pari.

Através delas olham-me o amado morto, o pai morto,
a avó perdida, e o mistério de tudo
que sempre me assombrou. Rosa de espantos,
cata-vento de traços espalhados
como num milagre de multiplicação,
cheio de surpresas: porque ali
naquele olho azul me vejo, naquela fina mão te vejo,
amado meu, como eles se verão futuramente
quando nós formos apenas sombra
na memória.

Lya Luft
In: Secreta Mirada

domingo, 15 de setembro de 2013

AUTO-RETRATO



Alguém diz que sou bondosa: 
está tão enganado que dá pena. 
Alguém diz que sou severa, 
e acho graça. 
Não sou áspera nem amena: 
estou na vida como o jardineiro 
se entrega em cada rosa".

 LYA LUFT 
In Para Não Dizer Adeus

DIZENDO ADEUS



Estou sempre dando adeus: 
também ao desencontro e ao 
desencanto. 
Estou sempre me despedindo 
do ponto de partida que me lança de si, 
do porto de chegada que nunca é 
aqui. 
Estou sempre dizendo adeus: 
até a Deus, 
para o reencontrar em outra esquina 
de adeuses. 
Estarei sempre de partida, 
até o momento de sermos deuses: 
quando me fizeres dar adeus à solidão 
e à sombra.

 LYA LUFT
In Para Não Dizer Adeus, 2005




terça-feira, 10 de setembro de 2013

MATURIDADE



Caminho entre as minhas perdas
que são insetos escuros,
e os meus ganhos: douradas borboletas.

A luz de uma paixão, o dedo da morte,
o grave pincel da solidão
desenharam meus contornos, firmaram
meu chão.

Que liberdade, não precisar pensar;
que alívio não ter de administrar
minha vida:
apenas andar, e olhar,
apenas ouvir essas vozes
que vêm de longe, passam por mim
e não me dão importância.

Porque no vasto oceano,
a minha eventual desarmonia
é só uma gota
desafinada.
Mais nada.

Lya Luft
In Para Não Dizer Adeus

ÚLTIMA CANÇÃO




Deus,
eu faço parte do teu gado:
esse que confinas em sonho e paixão
e às vezes em terrível liberdade.
Sou, como todos, marcada neste flanco
pelo susto da beleza, pelo terror da perda
e pela funda chaga dessa arte
em que pretendo segurar o mundo.
No fundo,
Deus,
eu faço parte da manada
que corre para o impossível,
vasto povo desencontrado
a quem tanges, ignoras
ou contornas
com teu olhar absorto.
Deus,
eu faço parte do teu gado
estranhamente humano,
marcado para correr amar morrer
querendo colo, explicação, perdão
e permanência.

Lya Luft
In Secreta mirada e outros poemas

RECEITA DE CASA



Uma casa deve ter varandas
para sonhar,cantos para chorar,
quartos para os segredos
e a ambivalência.

Um amor precisa espaço de voar,
liberdade para querer ficar,
alegria, e algum desassossego
contra o tédio.

Não se esqueçam os danos a cobrir,
o medo de partir, e o dom de surpreender
- que é a sua essência.

Lya Luft
In Para Não Dizer Adeus

SOMOS INOCENTES




A parte dura desta humana lida
é dizer sim na hora do não,
escolher mal entre silêncio e grito,
entre a noite e a explosão
do dia.

Ceder quando devíamos negar, dizer
não em lugar de afirmar, partir
quando era bom amar, fechar-se
em vez de resgatar
a vida.

Sermos tão incertos e indecisos,
perdendo o trem, a hora,
o agora: mas a gente
não sabia.

Lya Luft
In Para não dizer adeus.

PAIS E FILHOS



Aqui não cabe a poesia.Aqui
ficam à mostra as tripas
da nossa dor milenar.Aqui
fala-se de desencontro e impossibilidade,
onipotência e utopia.
Aqui se cantam as verdadeiras feridas
do amor.

Todos os filhos de todos os pais do mundo
estão nas trincheiras cotidianas:
mas temos os braços amarrados,
e não podemos apertá-los ao peito
como quando eram pequenos
e tínhamos a ilusão de que eram nossos.

Lya Luft
In Para Não Dizer Adeus

O OLHO DO OUTRO...



” O olho do outro está grudado em mim e me sinto 
permanentemente avaliado, nem sempre aprovado: 
se eu não for como sugerem ou exigem meu grupo,
família, sociedade, se não atender às propagandas,
aos modelos e ideais sugeridos, serei considerado 
diferente. Como adolescentes queremos ser iguais à 
turma, como adultos queremos ser aceitos pela tribo:
a pressão social é um fato inegável.

Não controlada, ela nos anulará”.


Lya Luft, 
in Múltipla Escolha 

CANÇÃO EM ROTA DE VÔO





" Antes os dias eram apenas dias :
perdas e ganhos , tarefas cumpridas ,
solidão e algumas alegrias .
Agora , objetos familiares
ganham contornos de sonho ,
palavras são aves do paraíso ,
o cotidiano virou do avesso
e se tornou milagre .

Quero um novo amor , tão leve
como se dançasse numa praia uma menina ."

Lya Luft ,"in
Secreta Mirada

ALGUÉM INVADE A TERRA...




" Alguém invade  a  terra , a  torre ,  a ilha  onde  a  gente
pensava  estar  imune  ao  susto . Somos  atropelados  pelo
inesperado , com o qual não  sabemos  o  que  fazer .
São  dádivas , são bênçãos  de  deuses  que sorriem  das
nossas  trapalhadas , e sabem que é melhor  o sobressalto
de  estar  vivo  do que o entorpecimento das  emoções ."
Lya Luft 
in  Secreta  Mirada  e outros poemas

EXCERTO



" Não vejo melhor projeto de vida  do que escolher o lado
do sol , em vez de acompanhar a procissão de queixosos .
Querer  ser  o  cuidador ( sem vitimização )
e não o perseguidor , não humilhar o parceiro  ou ironizar
o filho  que não vai esquecer isso  nunca mais .
A vida é uma longa construção :  em geral a  enxergamos
como deterioração .
Não conseguimos apreciar o outro lado , que é acúmulo ,
experiência , serenidade , mínima sabedoria  , mais tempo ,
quem sabe  mais bondade .
Construção de emoções positivas , com porões  de tristezas
e um sótão  de decepções , mas  a sala e os quartos arejados,
com portas que podemos  abrir  para que se revele o que
ainda virá em seguida e vai se desdobrar . 
Isso é o que  a gente decide  ".
 
Lya Luft 
in , " Múltipla Escolha "
 


O CONVITE


  
Não sou a areia
onde se desenha um par de asas
ou grades diante de uma janela.
Não sou apenas a pedra que rola
nas marés do mundo,
em cada praia renascendo outra.
Sou a orelha encostada na concha
da vida, sou construção e desmoronamento,
servo e senhor, e sou
mistério

A quatro mãos escrevemos este roteiro
para o palco de meu tempo:
o meu destino e eu.
Nem sempre estamos afinados,
nem sempre nos levamos
a sério.

- Lya Luft,
em "Perdas e Ganhos"

terça-feira, 13 de agosto de 2013

''Canção como aviso''

As minhas emoções estão intactas
como antes de acordar: serenas
nesta solidão, nem sei se esperam.
Será preciso alimentar de novo
a chama adormecida
do amor que armou incêndios na penumbra
e me apagou.


Estou aqui ainda, enriquecida a mais
com as memórias doces da alegria.
Para me alumiar, quem venha agora
terá de compreender o meu receio
de que seja longa só a fantasia
e breve a permanência de quem veio.

Lya Luft
In: Secreta Mirada

''CANÇÃO PENSATIVA''

Um toque da solidão, e um dedo
severo me traz à realidade: não depender
dos meus amores, não me enfeitar
demais com sua graça, mas ver
que cada um de nós é um coração sozinho.

Cada um de nós perenemente
é um espelho a se mirar, sabendo
que mesmo se nesse leito frio e branco
um outro amor quer derramar-se em nós,
entre gélido cristal e alma ardente
levanta-se paredes para sempre.

(E para sempre
a amante solidão nos chama e abraça.)

Lya Luft
In Secreta Mirada

''CANÇÃO EM OUTRAS PALAVRAS''

O melhor cuidado com o amor
é deixar que floresça,
pois amor não se cultiva: é flor
selvagem
Como as estações do ano, ele se abre,
dorme, e volta a perfumar a vida.
Amor é dom que se recebe
com ternura, para que não pereça
sua delicadeza em nossa angústia.

O amor não deve encerrar a coisa possuída,
mas ser parapeito de janela, ou cais
de onde se desprendam os revôos
e partam os navios da beleza
para voltar ou não, conforme amarmos:
nem de menos
nem demais.

Lya Luft
In Secreta Mirada
, bela por ser livre.

''CANÇÃO DA ALHEIA PRIMAVERA''

Talvez se agite um braço me chamando:
mas tão longe, nem move
as névoas dessa ausência.
Quando achei que era tempo, não era:
quando apanhei a estrela, passava
um vaga-lume qualquer entre meus dedos.

Talvez desça um navio me procurando
mas não quero viagens: sou
um pálido coral numa água morna,
e vagamente aflora um movimento
-mas pode ser a sombra do meu sono.

Talvez haja um amor me inventando,
mas tão vago, nem roça
as beiras da minha praia: concha breve
e encolhida, não vou desenrolar
o meu abraço. Quando achei
que era tempo, não era:
talvez este ondular entre meus ramos
venha de alguma alheia primavera.


Lya Luft
In: Secreta Mirada

''CANÇÃO EM SEGREDO''


Dentro desta mulher
um anjo menino
brinca de ciranda na calçada
e tem fome de futuro.
Dentro desta mulher
uma criança se debruça na janela
vendo chegar o amor
e se julga imortal.

Dentro desta mulher
uma guerreira constrói sua vida
depois de parir filhos para o mundo.
Dentro desta mulher
outra mulher enterra o seu amor perdido
e mesmo assim espera.

(Dentro desta mulher
o mistério das coisas
finge dormir.)

Lya Luft
In: Secreta Mirada

''CANÇÃO DA ESCUTA''

O sonho na prateleira
me olha com seu ar
de boneco quebrado.
Passo diante dele muitas vezes
e sorrimos um para o outro,
cúmplices de nossos desastres cotidianos.
Mas quando o pego no colo
(como às bonecas tão antigamente)
para avaliar se tem conserto
ou se ficará para sempre como está,
sinto sem estranheza
que dentro dele ainda bate
um pequeno tambor obstinado
e marca – timidamente –
um doce ritmo nos meus passos.

Lya Luft
In: Secreta Mirada

''CANÇÃO NA JANELA''

Há pouco emergi
da mornidão do sono.
Pensei flutuar:
onde termina minha vida
e começa o mar?
Tudo ao meu redor são dois
cristais reverberando.

Meu destino me contempla
indagador:
nesta imensidão
sou um capim perfumado
que balança, a um tempo
susto e chamamento
-pronta para me desfazer
em outra alma.

Lya Luft
In: Secreta Mirada