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sexta-feira, 20 de setembro de 2013

''Canção da tua chegada''


Este fogo, esta fonte,
esta noite de insônia:
teus panos na cama
teus passos na casa
tua voz ao meu lado.
Meu bem que viaja
num mundo tão outro
e está no meu peito
e alumia estas dores
me povoa, me coroa
me leva na sua escuna,
me define, me redime
me inventa e desinventa
que corre comigo
que comigo deita
comigo viaja
na casa no vento
no fogo da fonte
no quarto que é o mundo.

Lya Luft
In: Secreta Mirada

''Canção do rio do meio''


Um rio jorra entre o porão e o sótão:
leva dores e amores, e nosso último riso
há tanto tempo.
Mas numa curva qualquer, porque de novo amamos,
tudo pulsa e brilha de ousadia,
sabendo que temos pela frente
esse calor, esse rumor de águas na areia.


Passa no meio de nós, entre o sonho do sótão
e o medo dos porões, o rio da vida:
que me leve para ti ainda uma vez e muitas,
que venhas até mim antes daquela curva
com a audácia e o fervor que tínhamos perdido.

Lya Luft
In: Secreta Mirada

AVISO


 
Se me quiserem amar, terá de ser agora:
depois, estarei cansada.
Minha vida
foi feita de parceria com a morte:
pertenço um pouco a cada uma,
para mim sobrou quase nada.
 
Ponho a máscara do dia,
um rosto cômodo e fixo:
assim garanto a minha sobrevida.
Se me quiserem amar, terá de ser hoje:
amanhã, estarei mudada.
 
- Lya Luft,
em "Mulher no palco", 1984.
 

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

''Canção em dueto''


Concha rumorosa
tua voz derrama
esse mel dourado
sobre minha vida
teu olhar me inventa
teu gesto me esboça
tenho um rosto novo
que eu nem conhecia.


Concha rumorosa
tua voz me chama
para encontros raros
em outras paragens
delícia de susto
água e labareda
ânsia tão pungente
de que acabe a espera.


Concha rumorosa
vasto mar secreto
onde tu me salvas
e onde eu me naufrago.

Lya Luft
In: Secreta Mirada

''Canção do caleidoscópio''

Quando achei que era tempo de sossego
jorraste nas minha veias
como um vento sagrado, um mar perdido.
Quando esperei que tudo tivesse sido
vivido, sofrido e chorado,
amadureceu esta fruta em meu deserto.


Quando pensei chegar no fim
de todos os corredores,
esta porta se abriu: sei que estás ali
a desenhar paisagens novas
plantar árvores e deitar rios
onde eu imaginava haver sabedoria
e um corpo apaziguado,
nada mais.

Lya Luft
In: Secreta Mirada

'Canção como aviso'


As minhas emoções estão intactas
como antes de acordar: serenas
nesta solidão, nem sei se esperam.
Será preciso alimentar de novo
a chama adormecida
do amor que armou incêndios na penumbra
e me apagou.


Estou aqui ainda, enriquecida a mais
com as memórias doces da alegria.
Para me alumiar, quem venha agora
terá de compreender o meu receio
de que seja longa só a fantasia
e breve a permanência de quem veio.

Lya Luft
In: Secreta Mirada

''Canção da imortalidade''

 

Os filhos que tive são adultos,
com filhos que também tiveram: sangue
e cílios,
jeito de andar, gesto
e gosto nesta vida estão nessas carnes que pari.

Através delas olham-me o amado morto, o pai morto,
a avó perdida, e o mistério de tudo
que sempre me assombrou. Rosa de espantos,
cata-vento de traços espalhados
como num milagre de multiplicação,
cheio de surpresas: porque ali
naquele olho azul me vejo, naquela fina mão te vejo,
amado meu, como eles se verão futuramente
quando nós formos apenas sombra
na memória.

Lya Luft
In: Secreta Mirada

domingo, 15 de setembro de 2013

AUTO-RETRATO



Alguém diz que sou bondosa: 
está tão enganado que dá pena. 
Alguém diz que sou severa, 
e acho graça. 
Não sou áspera nem amena: 
estou na vida como o jardineiro 
se entrega em cada rosa".

 LYA LUFT 
In Para Não Dizer Adeus

DIZENDO ADEUS



Estou sempre dando adeus: 
também ao desencontro e ao 
desencanto. 
Estou sempre me despedindo 
do ponto de partida que me lança de si, 
do porto de chegada que nunca é 
aqui. 
Estou sempre dizendo adeus: 
até a Deus, 
para o reencontrar em outra esquina 
de adeuses. 
Estarei sempre de partida, 
até o momento de sermos deuses: 
quando me fizeres dar adeus à solidão 
e à sombra.

 LYA LUFT
In Para Não Dizer Adeus, 2005




terça-feira, 10 de setembro de 2013

MATURIDADE



Caminho entre as minhas perdas
que são insetos escuros,
e os meus ganhos: douradas borboletas.

A luz de uma paixão, o dedo da morte,
o grave pincel da solidão
desenharam meus contornos, firmaram
meu chão.

Que liberdade, não precisar pensar;
que alívio não ter de administrar
minha vida:
apenas andar, e olhar,
apenas ouvir essas vozes
que vêm de longe, passam por mim
e não me dão importância.

Porque no vasto oceano,
a minha eventual desarmonia
é só uma gota
desafinada.
Mais nada.

Lya Luft
In Para Não Dizer Adeus

ÚLTIMA CANÇÃO




Deus,
eu faço parte do teu gado:
esse que confinas em sonho e paixão
e às vezes em terrível liberdade.
Sou, como todos, marcada neste flanco
pelo susto da beleza, pelo terror da perda
e pela funda chaga dessa arte
em que pretendo segurar o mundo.
No fundo,
Deus,
eu faço parte da manada
que corre para o impossível,
vasto povo desencontrado
a quem tanges, ignoras
ou contornas
com teu olhar absorto.
Deus,
eu faço parte do teu gado
estranhamente humano,
marcado para correr amar morrer
querendo colo, explicação, perdão
e permanência.

Lya Luft
In Secreta mirada e outros poemas

RECEITA DE CASA



Uma casa deve ter varandas
para sonhar,cantos para chorar,
quartos para os segredos
e a ambivalência.

Um amor precisa espaço de voar,
liberdade para querer ficar,
alegria, e algum desassossego
contra o tédio.

Não se esqueçam os danos a cobrir,
o medo de partir, e o dom de surpreender
- que é a sua essência.

Lya Luft
In Para Não Dizer Adeus

SOMOS INOCENTES




A parte dura desta humana lida
é dizer sim na hora do não,
escolher mal entre silêncio e grito,
entre a noite e a explosão
do dia.

Ceder quando devíamos negar, dizer
não em lugar de afirmar, partir
quando era bom amar, fechar-se
em vez de resgatar
a vida.

Sermos tão incertos e indecisos,
perdendo o trem, a hora,
o agora: mas a gente
não sabia.

Lya Luft
In Para não dizer adeus.

PAIS E FILHOS



Aqui não cabe a poesia.Aqui
ficam à mostra as tripas
da nossa dor milenar.Aqui
fala-se de desencontro e impossibilidade,
onipotência e utopia.
Aqui se cantam as verdadeiras feridas
do amor.

Todos os filhos de todos os pais do mundo
estão nas trincheiras cotidianas:
mas temos os braços amarrados,
e não podemos apertá-los ao peito
como quando eram pequenos
e tínhamos a ilusão de que eram nossos.

Lya Luft
In Para Não Dizer Adeus

O OLHO DO OUTRO...



” O olho do outro está grudado em mim e me sinto 
permanentemente avaliado, nem sempre aprovado: 
se eu não for como sugerem ou exigem meu grupo,
família, sociedade, se não atender às propagandas,
aos modelos e ideais sugeridos, serei considerado 
diferente. Como adolescentes queremos ser iguais à 
turma, como adultos queremos ser aceitos pela tribo:
a pressão social é um fato inegável.

Não controlada, ela nos anulará”.


Lya Luft, 
in Múltipla Escolha 

CANÇÃO EM ROTA DE VÔO





" Antes os dias eram apenas dias :
perdas e ganhos , tarefas cumpridas ,
solidão e algumas alegrias .
Agora , objetos familiares
ganham contornos de sonho ,
palavras são aves do paraíso ,
o cotidiano virou do avesso
e se tornou milagre .

Quero um novo amor , tão leve
como se dançasse numa praia uma menina ."

Lya Luft ,"in
Secreta Mirada

ALGUÉM INVADE A TERRA...




" Alguém invade  a  terra , a  torre ,  a ilha  onde  a  gente
pensava  estar  imune  ao  susto . Somos  atropelados  pelo
inesperado , com o qual não  sabemos  o  que  fazer .
São  dádivas , são bênçãos  de  deuses  que sorriem  das
nossas  trapalhadas , e sabem que é melhor  o sobressalto
de  estar  vivo  do que o entorpecimento das  emoções ."
Lya Luft 
in  Secreta  Mirada  e outros poemas

EXCERTO



" Não vejo melhor projeto de vida  do que escolher o lado
do sol , em vez de acompanhar a procissão de queixosos .
Querer  ser  o  cuidador ( sem vitimização )
e não o perseguidor , não humilhar o parceiro  ou ironizar
o filho  que não vai esquecer isso  nunca mais .
A vida é uma longa construção :  em geral a  enxergamos
como deterioração .
Não conseguimos apreciar o outro lado , que é acúmulo ,
experiência , serenidade , mínima sabedoria  , mais tempo ,
quem sabe  mais bondade .
Construção de emoções positivas , com porões  de tristezas
e um sótão  de decepções , mas  a sala e os quartos arejados,
com portas que podemos  abrir  para que se revele o que
ainda virá em seguida e vai se desdobrar . 
Isso é o que  a gente decide  ".
 
Lya Luft 
in , " Múltipla Escolha "
 


O CONVITE


  
Não sou a areia
onde se desenha um par de asas
ou grades diante de uma janela.
Não sou apenas a pedra que rola
nas marés do mundo,
em cada praia renascendo outra.
Sou a orelha encostada na concha
da vida, sou construção e desmoronamento,
servo e senhor, e sou
mistério

A quatro mãos escrevemos este roteiro
para o palco de meu tempo:
o meu destino e eu.
Nem sempre estamos afinados,
nem sempre nos levamos
a sério.

- Lya Luft,
em "Perdas e Ganhos"